O Ministério da Defesa enviou ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) nesta quarta-feira (9) seu relatório sobre a fiscalização do processo eleitoral sem ter apontado nenhum indício de fraude, apesar da ofensiva de bolsonaristas para tentar questionar a vitória de Lula (PT) e a derrota de Jair Bolsonaro (PL).
O material entregue à corte aponta que os procedimentos estatísticos ocorreram sem ressalvas e que a análise dos boletins de urnas não identificou divergências. Considera, porém, haver alguns problemas no processo e aponta sugestões de melhorias.
O relatório diz que não foi possível “fiscalizar o sistema [eletrônico de votação] completamente” e sugeriu ao TSE que faça uma investigação técnica para apurar eventuais riscos de mudança no código-fonte dos sistemas eleitorais por causa do possível acesso à rede durante a geração dos programas.
Em nota, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, agradeceu o envio do relatório do Ministério da Defesa e disse que analisará as sugestões em momento oportuno.
“O Tribunal Superior Eleitoral recebeu com satisfação o relatório final do Ministério da Defesa, que, assim como todas as demais entidades fiscalizadoras, não apontou a existência de nenhuma fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022”, disse.
“O TSE reafirma que as urnas eletrônicas são motivo de orgulho nacional, e que as eleições de 2022 comprovam a eficácia, a lisura e a total transparência da apuração e da totalização dos votos”, completou.
Antes da manifestação da Defesa, outros órgãos fiscalizadores haviam apontado a regularidade do processo eleitoral, como o TCU (Tribunal de Contas da União) e a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
O documento dos militares enviado ao tribunal tem 63 páginas, sendo 24 de análise das etapas de fiscalização e o restante de anexos.
Entre as sugestões à corte eleitoral estão a “criação de uma comissão específica, integrada por técnicos renomados da sociedade e por técnicos representantes das entidades fiscalizadoras”.
“Em face da importância do processo eleitoral para a harmonia política e social do Brasil, solicito, ainda, a essa corte superior considerar a urgência na apreciação da presente proposição”, diz.
No ofício enviado ao TSE, a Defesa diz que “não é possível afirmar que o sistema eletrônico de votação está isento da influência de um eventual código malicioso que possa alterar o seu funcionamento”.
Na prática, ao mesmo tempo em que aponta não ter identificado nenhum indício de fraude, a pasta evita afrontar Bolsonaro, ao indicar que não teria como assegurar a total confiabilidade do processo.
No início do documento, a Defesa destaca que não está no escopo do trabalho “avaliar o grau de segurança” dos sistemas eleitorais ou das urnas eletrônicas.
“Assim, a descrição das constatações decorrentes do processo fiscalizatório tem o intuito ímpar de apresentar à corte eleitoral contribuições para um eventual aperfeiçoamento, de forma independente e isenta, sob a ótica de uma entidade fiscalizadora”, afirma.
No relatório, a Defesa afirma que identificou problemas em ao menos três etapas relevantes para a fiscalização do pleito.
O mais relevante, segundo a equipe, foi a possibilidade de acesso à rede do TSE durante a cerimônia de compilação, assinatura digital e lacração dos sistemas eleitorais.
“A ocorrência de acesso à rede, durante a compilação dos códigos-fontes e consequente geração dos programas (códigos binários), pode configurar relevante risco à segurança do processo, o que sugere a realização de uma investigação técnica para melhor conhecimento do ocorrido e de seus possíveis efeitos.”
A pasta ainda aponta que os técnicos tiveram dificuldade para analisar os códigos-fontes dos sistemas eleitorais por causa das restrições impostas pelo TSE.
Como a Folha revelou, a equipe da Defesa passou duas semanas no tribunal analisando os códigos com anotações em caneta e papel. Como sugestão, a pasta pede que seja possível levar equipamentos próprios para a etapa de auditoria.
O relatório propõe ainda que as entidades fiscalizadoras possam usar “ferramentas de análises dinâmicas” para analisar os códigos e que seja concedido o “acesso às bibliotecas de software desenvolvidas por terceiros”.
Em outra frente, o Ministério da Defesa afirmou que o projeto-piloto do teste de integridade com biometria teve baixa participação, o que, na avaliação da pasta, não permite tirar conclusões efetivas do resultado.
A pasta destaca, como outras “deficiências”, o fato de alguns estados não participarem do projeto e a escolha pré-definida das seções eleitorais cujas urnas seriam testadas, sem o conceito da aleatoriedade.
“De todo o trabalho realizado, observou-se que, devido à complexidade do SEV e à falta de esclarecimentos técnicos oportunos e de acesso aos conteúdos de programas e bibliotecas, mencionados no presente relatório, não foi possível fiscalizar o sistema completamente, o que demanda a adoção de melhorias no sentido de propiciar a sua inspeção e a análise completas.”
Apesar das sugestões de melhoria e dos problemas apontados, a Defesa afirmou que todos os procedimentos estatísticos ocorreram sem ressalvas.
A análise dos boletins de urnas, como revelado pela Folha, não identificou divergência nos dados registrados com os votos totalizados pelo TSE.
“[No segundo turno,] por meio da comparação de 501 BU (Boletins de Urna), é possível inferir, com um nível de confiança de 95%, que a média de BU com inconsistências, dentro todos os BU do espaço amostral, é 0%, com um erro de até 4,38 pontos percentuais”, concluiu.
Em outra frente, o teste de integridade tradicional também não registrou problemas —o que mostra que as urnas testadas computaram corretamente os votos.
“O Teste de Integridade (sem biometria) não encontrou, em todos os TRE, inconsistências nas urnas escolhidas e sorteadas. Conclui-se que o Teste de Integridade foi realizado em conformidade com o previsto.”
O relatório é assinado pelo ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, e os coronéis integrantes da equipe de fiscalização Marcelo Nogueira (Exército), Wagner Oliveira (FAB) e Marcus Rogers Cavalcante (Marinha).
As Forças Armadas foram incluídas na lista de entidades fiscalizadoras da eleição em 2021, por decisão do então presidente do TSE, Luís Roberto Barroso.
A medida, cujo objetivo era reduzir as manifestações golpistas de Bolsonaro, foi vista na cúpula do Judiciário como um tiro no pé, já que a atuação dos militares deu ainda mais munição para o presidente atacar as urnas e criar desconfiança no processo eleitoral.
Paulo Sérgio Nogueira, visto na caserna como um político habilidoso, com capacidade de reverter situações adversas, passou a ser alvo de críticas de colegas de farda por fazer coro às reclamações de Bolsonaro. Em defesa, o ministro diz que a atuação da Defesa no processo eleitoral sempre foi técnica.
Durante a gestão de Edson Fachin à frente do TSE, a relação do tribunal com o Ministério da Defesa foi marcada por desavenças. O ministro negou pedidos de Paulo Sérgio para que as equipes técnicas da pasta e do tribunal se reunissem para tirar dúvidas.
Em resposta, a Defesa enviou uma série de ofícios com questionamentos para o tribunal. No momento de maior crise, em junho, Paulo Sérgio disse que as equipes da pasta não se sentiam “devidamente prestigiadas” na discussão sobre o processo eleitoral.
Alexandre de Moraes assumiu a presidência do TSE em agosto e definiu a mudança na relação com o Ministério da Defesa como uma das prioridades de sua gestão.
Antes de completar uma semana no cargo, Moraes recebeu o ministro Paulo Sérgio e técnicos da Defesa para discutir a criação de um projeto-piloto do teste de integridade com biometria –a principal sugestão da equipe militar.
Em 13 de setembro, 19 dias antes da eleição, o TSE aprovou a mudança no teste de integridade e firmou um armistício com o Ministério da Defesa.
O mal-estar voltou após a Folha revelar, em setembro, que os militares planejavam analisar 385 boletins de urna para checar a contagem dos votos feita pelo TSE —trabalho permitido para qualquer cidadão ou entidade fiscalizadora.
A crise voltou a se intensificar após a Defesa se negar a enviar um relatório com os resultados da fiscalização do primeiro turno das eleições, como fizeram outras entidades fiscalizadoras, como o TCU e a Transparência Eleitoral.
Sem o documento, Moraes chegou a se negar a analisar sugestões apresentadas pela Defesa de melhoria no segundo turno das eleições.
“Noticia que as sugestões recebidas do Ministério da Defesa serão analisadas assim que esta Corte Superior venha a receber o relatório final das Forças Armadas acerca do assunto”, disse o ministro, em ofício.