Atraída por uma proposta de trabalho sedutora em Bangcoc, na Tailândia, divulgada nas redes sociais, Nathalia Belchior Munhoz, de 25 anos, moradora de Ribeirão Pires (SP), decidiu apostar todas as fichas no que, acreditava até ali, seria uma grande oportunidade para mudar o patamar de sua vida e, sobretudo, de suas filhas. Afinal, viveria em uma das capitais mais agitadas do mundo, num país de praias paradisíacas, e havia a promessa de que ganharia, por mês, US$ 1,5 mil dólares – cerca de R$ 8 mil, para um trabalho simples, em um call center. Para a primeira viagem a um país desconhecido, resolveu convidar o amigo, Patrick da Silva Palma de Lopes, também de 25 anos, para acompanhá-la. Eles embarcaram no dia 12 de julho. Começava ali, já no desembarque, o que a família define hoje como um pesadelo, que se estenderia pelos quatro meses seguintes. Sob ameaça armada de uma milícia asiática, eles foram sequestrados, tiveram meios de contato limitados e, vítimas de tráfico humano, foram obrigados a trabalhar em um esquema internacional de extorsão, em condições análogas à escravidão.
Nesta quarta-feira (16), o caso teve um desfecho. Nathalia e Patrick desembarcaram no Brasil e voltaram para casa. Mas o caminho percorrido até um final feliz foi longo. “Estamos exaustos”, definiu o pai, Cristiano de Lima Munhoz, à reportagem. Ele e a mãe, Vanessa Aparecida Munhoz contaram ao GLOBO sobre a tensão vivida nos últimos 4 meses, do cárcere até a libertação. Antes, Cristiano falou sobre o alívio de voltar a ter as filhas nos braços.
– Vivemos uma mistura de sentimentos durante a expectativa da chegada deles. Momentos de felicidade, nervosismo, angústia, choro. Ao vê-los e tocá-los, tudo isso foi desmoronando. O alívio de saber que eles estavam salvos de um país que se encontra em guerra civil, violento, um ambiente inóspito. Tanta coisa negativa, com o Natal chegando e minha filha do meio prestes a ter um bebê… imagina a minha situação – relatou, emocionado. – Quando desembarcaram, foi uma emoção só. Sensação de alívio, paz e gratidão a Deus. Eu ganhei um presente de Deus!
Ele conta que, durante todo o período em que a filha e o amigo estiveram sob o poder dos criminosos, as famílias viveram momentos de angústia e desespero.
– Foram noites sem dormir direito, sem comer… passamos por grandes dificuldades e tivemos que montar um quebra-cabeça. Enfrentamos muitos jogos de empurra, informações que não se encontravam… Não tivemos apoio de autoridades locais, até que as coisas foram clareando… Enviei informações ao Itamaraty e comecei a fazer contato em Yangon (cidade de Myanmar). A carga de estresse foi enorme. E, quando estávamos nos preparando para ir ao Itamaraty, em Brasília, recebemos as informações da libertação – relembra.
O ‘pesadelo’
A família de Nathalia conta que tudo começou quando ela viu um anúncio da vaga de emprego do outro lado do mundo no Instagram e se interessou ao ver que se enquadrava dentro do perfil. O homem, responsável pela divulgação, se apresentava como André.
–Não sei ao certo se o rapaz ela já conhecia ou não, mas ela me pediu opinião e eu fui contrário, não havia gostado da idéia, por algumas razões lógicas. Uma delas, por causa das filhas dela. Outra, por questões da minha saúde. Minha esposa é muito ausente por conta de sua profissão, de técnica em enfermagem. Mas, por fim, ela aceitou a proposta e nos comunicou, dizendo que precisava trabalhar e sustentar as filhas dela. Mesmo contrariados, aceitamos – conta Cristiano.
Em seguida, ele conta que a família fez uma reunião para decidir que suporte dariam às netas, Marina, de 5 anos, e Antônia Beatriz, de 4. Resolveram que ambas ficariam no Brasil, sob a responsabilidade dele, e agitaram a papelada. Na sequência, por medo de viajar sozinha para um lugar desconhecido, Nathalia convidou seu amigo Patrick para acompanhá-la, e ele aceitou. Eles, então, concluíram todos os trâmites e partiram num voo rumo à capital da Tailândia.
– O pesadelo começa já na chegada em Bangcoc. Ali tudo começou – narra o pai. – As pessoas que conduziriam eles até a empresa não falavam inglês ou português. Ao entrarem no carro, eles já se depararam com duas pessoas fortemente armadas com metralhadoras e fuzis. Com medo, minha filha postou um vídeo mostrando o entorno durante a chegada e, de relance, alguns dos caras. Já mostrou certa apreensão ali. Àquela altura, eu ainda tentei tranquiliza-la. Como pai, já não tinha muito o que fazer, ela já estava lá.
Fome e frio na cela
Nathalia relatou que viajou durante dois dias de carro após desembarcar em Bangcoc, até a chegada num local chamado KKparque, já em Myanmar: uma espécie de condomínio dominado e vigiado pela milícia que a sequestrara.
– Lá ela começou a situação inóspita que enfrentaria. Um ambiente hostil, agressivo, com duras horas de trabalho. E ela contou que eles eram ainda mais cruéis e agressivos com os asiáticos mantidos lá – conta o pai. – Mas todos eram vigiados pelos rebeldes ou milicianos fortemente armados, que não deixavam ninguém sair do parque. Entravam e saíam apenas com a autorização do chefe da quadrilha.
Ainda muito abalada, Nathalia ainda não consegue falar muito sobre o que passou. Com exclusividade, deu alguns detalhes sobre como era mantida no cárcere.
– Comia tripas, lesmas, dormi em chão duro, passei fome e frio – revela.
A vítima também relata que, no cativeiro, muitas pessoas consumiam alimentos em mamadeiras, por vezes agiam como crianças. Outros, eram semelhantes a indígenas. “Um povo muito sofrido, pobre”, definiu. As condições sanitárias eram precárias. Além de tudo, ela conta que sofria com as diferenças culturais em relação à alimentação.
– Eles comem cobras, escorpiões, pato, rãs, muitos legumes, muito miojo. O café da manhã lá às vezes era miojo… a água que nos davam para beber era salobra – relata Nathalia.
Trabalho consistia em golpes financeiros
Os sequestradores deixavam que ela e Patrick ficassem com seus celulares. Mas não podiam filmar, apenas realizar ligações rápidas. Foi assim que ela conseguiu se comunicar com a família, mas sempre de forma sutil, tentando tranquiliza-los. Após alguns meses, no início de setembro, o temor começou a se intensificar e ela começou a dar maiores detalhes aos parentes sobre o que estava acontecendo. Antes, já havia dito, através de um áudio, para que eles entrassem em contato com autoridades policiais caso ela desaparecesse por dois dias ou mais.
No cativeiro, eles contam que eram obrigados a trabalhar entre 14h e 16h por dia, com apenas uma folga por mês. E o trabalho era criminoso. Eles ficavam encarregados de, através de redes sociais, extorquir criptomoedas de americanos, num golpe onde faziam-se passar por mulheres interessadas com perfis falsos.
– Muitas coisas que ela presenciou lá, ela não nós contava por preservação da minha saúde e da minha esposa. Mas relatava à irmã. Ela dizia que eles eram agressivos, davam tapas e socos nas pessoas de mesma etnia, e outras vezes duros castigos – diz Cristiano. – Ela e o Patrick começaram a passar mal, até mesmo por conta das alimentações, e em certas ocasiões ela deixava escapar que estaria vivendo um inferno e que queria vir embora. Muitas vezes ela deixou escapar que não via a hora de vir embora, que o lugar era horrível, que não tinha o que fazer. Nas raras folgas que tinha, não tinha o que fazer lá, além de dormir.
Presos por falta de visto
A família de Patrick foi a primeira a procurar a mídia e as autoridades para contar sobre a situação vivida pelo rapaz. A divulgação chegou até os sequestradores, que entraram com truculência nos quartos, tomaram os celulares dos brasileiros e formataram os aparelhos. Foi nesse momento que Cristiano e Vanessa contam que procuraram o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty). Os bandidos alegavam que os brasileiros tinham uma dívida com eles.
– Entrei em contato com o Itamaraty e com a embaixada de Yangon. Depois da primeira reportagem, o grupo (de sequestrados) começou a se articular lá dentro, por intermédio do Patrick e da minha filha. Eles sofreram, mas os bandidos afastaram eles das atividades por 18 dias alegando que os soltariam. Cobraram um resgate de US$ 6 mil dólares, que a família do Patrick conseguiu levantar. Depois, disseram que não podiam libertá-los ainda porque tinham que esperar a chegada dos passaportes.
Ali começava mais uma etapa dramática da história. Após a chegada dos passaportes, os milicianos disseram que eles estavam livres e que seriam levados de volta até o aeroporto de Bangcoc.
– Mas não foi o que aconteceu. Os milicianos levaram eles e soltaram em outro lugar, onde eles foram detidos em um distrito sob a alegação de estarem sem vistos. Foram presos por conta da irregularidade. Quando eles foram pegos pela imigração, começamos, então a cobrar o Itamaraty e a embaixada. Depois de muita cobrança, foram soltos e mandados de volta ao Brasil.
Outros brasileiros e indianos libertados
Questionado pela reportagem sobre o caso, o Itamaraty afirmou que, após negociar a liberação de cidadãos brasileiros que se encontravam detidos em Myanmar, a pasta, por meio da Embaixada do Brasil em Yangon, empreendeu a repatriação.
Nathalia contou à família que, ao todo, foram libertadas mais de 50 pessoas que estavam mantidas em cárcere com eles. Pelo menos 38 indianos e dez brasileiros que conheceu durante o período em que foi mantida sob poder dos criminosos. Segundo ela, a maioria dos brasileiros era de Sobral, no Ceará.
Deixadas para trás
Já em casa, a vítima da quadrilha começa, aos poucos, a contar mais aos pais sobre o que aconteceu durante os últimos quatro meses. Ela conta que continua recebendo mensagens de pessoas que continuaram presas nas celas de “KKParque”.
– Tem quatro taiwanesas e uma jovem da Indonésia que estão pedindo socorro no celular dela (da Nathalia). Tem uma que já está lá há dois meses e só chora… tem mensagens no telefone em mandarim, que alguém vai precisar decifrar para a gente, mas estão pedindo socorro, porque continuaram lá – revela a mãe, Vanessa.
– A minha filha foi pensando em dar melhores condições de vida às minhas netas e, também, em terminar de construir a casinha dela no fundo aqui de casa – diz o pai, emocionado. – Agora, é aguardamos o reencontro dela com as meninas (que estavam esfriando a cabeça na casa da bisavó, Silvia, no interior do estado) e voltar a sermos felizes. Ver onde erramos e corrigir esses erros.