A busca emergencial por maior estrutura na rede de saúde devido à pandemia do novo coronavírus interrompeu, pela primeira vez, uma queda que vinha ocorrendo nos últimos dez anos no total de leitos de internação existentes no SUS.
Dados de um levantamento feito pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) mostram que, entre fevereiro e junho deste ano, foram abertos 22.810 leitos de internação na rede pública. Com isso, o total passou de cerca de 294 mil a 317 mil.
Até então, o Brasil vinha registrando a cada ano uma queda no número desses leitos. Entre janeiro de 2011 e janeiro de 2020, por exemplo, 41 mil deles haviam sido fechados.
A inversão da curva também fica visível ao observar dados dos primeiros seis meses de 2019 e de período semelhante de anos anteriores —os quais também apontavam queda até então.
Segundo o CFM, todos os 22.810 leitos extras abertos neste ano são de clínica geral, o que indica que podem estar relacionados à epidemia da Covid-19 no país.
O balanço não engloba o total de leitos de UTI, que também tiveram aumento no período. Até agora, ao menos 11.084 foram habilitados e passaram a ser financiados para uso na rede, de acordo com o Ministério da Saúde.
Para Hideraldo Cabeça, 1º secretário do CFM, ao trazer nova carga ao sistema, a Covid-19 também evidenciou parte do deficit de estrutura que existia na rede.
“Já sabíamos dessa deficiência, o que está ligado também à fila de espera por leitos e de procedimentos eletivos. A pandemia veio deixar essa dificuldade existente na saúde de fácil percepção.”
O conselho alerta, porém, para o risco de nova queda no total de leitos em breve.
Isso ocorre porque, além de uma expansão de leitos em unidades fixas da rede, a epidemia estimulou a abertura de hospitais de campanha, tidos como provisórios —não há dados de quanto eles representam do total.
“A nossa preocupação é que muitos desses leitos estão em locais onde não é possível mantê-los, como hospitais em ginásios, campos de futebol e centros de convenções”, afirma.
Para Cabeça, é preciso avaliar agora a possibilidade de absorver os leitos onde a expansão ocorreu dentro ou próxima de infraestrutura existente.
O debate de qual deve ser o destino da nova estrutura criada em meio à pandemia tem ganhado força nos últimos dias, em meio aos primeiros sinais de uma possível queda no total de novos casos em algumas regiões.
Para Gulnar Azevedo, professora de epidemiologia da UERJ, ainda é cedo para fechar leitos, mesmo que provisórios, já que há risco de novas infecções.
“Ainda estamos em pandemia, que não acabou. Em alguns lugares, vemos uma atenuação do crescimento, de uma curva que tende a estabilizar, mas ainda não podemos dizer que está sob controle”, afirma Azevedo, que também é presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
Ela sugere que parte dos leitos em locais onde há os primeiros sinais de queda de novos casos da Covid seja usada para garantir o atendimento de pacientes após a saída da UTI e daqueles com quadros menos graves, mas que não têm condições adequadas de isolamento em casa e também precisam de monitoramento e cuidados intermediários.
Ou, ainda, que haja um plano para que a estrutura seja atrelada ao atendimento de pacientes vindos de cidades do interior —dos 22.810 novos leitos, 9.762 estão em capitais.
Para Cabeça, o ideal é que haja um esforço para que parte dos leitos seja incorporada no pós-pandemia de acordo com o gargalo de cada região.
Ele cita dados que mostram que, nos últimos anos, áreas como obstetrícia e cirurgia geral tiveram maior perda de leitos.
Outra necessidade é preparar a rede para atendimento de demandas que ficaram represadas em meio à epidemia da Covid-19, caso de cirurgias eletivas, por exemplo.
À Folha, secretários estaduais de saúde confirmam a intenção de manter parte dos leitos abertos, mas apontam o financiamento dessa estrutura como desafio.
“Há uma discussão sobre como construir um legado após a pandemia para o sistema de saúde, mas o financiamento é sempre um problema”, afirma o secretário de saúde do Maranhão e presidente do Conass, conselho que reúne gestores estaduais de saúde, Carlos Lula.
“Cito o exemplo do meu estado. Abrimos 13 hospitais de março até agora. Desses, oito ficarão de maneira permanente pra nossa rede. Mas manter isso em pé será um desafio”, aponta ele, que diz analisar agora como manter o financiamento.
O tema deve ser discutido em reunião com os 27 secretários estaduais de saúde nesta semana.
A preocupação com o financiamento é compartilhada por gestores municipais.
Segundo Mauro Junqueira, do Conasems (conselho de secretários municipais de saúde), é cedo para saber se os leitos devem ser mantidos.
“Não adianta ter o leito e ele estar ocioso, porque isso tem custo. Mas obviamente em algumas regiões vai ficar como legado um aumento, e esperamos que tenhamos equipes e recursos para manter tudo isso.”
Dados do levantamento feito pelo CFM mostram São Paulo, Pernambuco e Minas Gerais como os estados que abriram a maior quantidade de leitos em números absolutos.
Já em proporção à população, o maior aumento foi em Roraima, Sergipe e Amapá.
Só em São Paulo, foram criados 5.000 leitos de enfermaria. Também foram abertos outros 4.500 de terapia intensiva, de acordo com a secretaria estadual de saúde.
Destes últimos, apenas 2.500 foram habilitados pelo ministério. Os demais ainda aguardam resposta, diz a pasta, que reforça o pedido por “apoio no custeio da assistência”.
Questionada sobre a possibilidade de manter os novos leitos após a pandemia, a secretaria não respondeu. Diz apenas que “mantém o compromisso de garantir assistência e aprimorar a rede, com base em critérios técnicos e nas necessidades da população.”
Em nota, o Ministério da Saúde informou que, diante da pandemia por Covid-19, habilitou 11.084 leitos de UTI, com investimento de R$ 1,5 bilhão. A pasta não informou o total de leitos de internação clínicos abertos no período.
Sobre os planos de absorção dos novos leitos, o ministério afirma que a manutenção será discutida com gestores estaduais e municipais de saúde após o período de emergência.