Da escola, Raphaela dos Santos, 5, lembra apenas do parquinho. Mais de nove meses sem aula a fizeram esquecer o nome da professora, dos colegas de sala, como escrever o próprio nome e os números.
Com a mãe trabalhando fora e sem um adulto em casa que pudesse acompanhá-la nas tarefas, Raphaela não tinha um celular para assistir às aulas online ou quem a ajudasse com as atividades do kit impresso distribuído pela prefeitura de São Paulo.
“Ela não aprendeu nada e ainda esqueceu o que sabia. No começo do ano, ela estava escrevendo o próprio nome e depois foi esquecendo. Eu tentei ensinar, escrevia no papel e pedia pra copiar, mas acho que não é assim que criança aprende”, contou a mãe Cindy Santana, 22.
Em maio, a Folha mostrou que Raphaela e outras crianças de Paraisópolis, na zona sul da capital paulista, não tinham lápis, papel nem celular para continuar com as atividades escolares em casa. Segundo as famílias, pouco mudou ao longo do ano.
“Recebemos só o caderno de atividades, mas eram tarefas muito difíceis. Ela não conseguia fazer e a gente não sabia ajudar”, disse Santana.
Na mesma rua mora Ana Júlia Oliveira, 5, que também passou os últimos nove meses sem fazer nenhuma atividade da escola. Nesse período, sua brincadeira favorita foi colorir um almanaque da Turma da Mônica, que ganhou da mãe.
“Ela passa horas quietinha pintando. Eu disse que ela tinha de fazer um pouco por dia para não acabar tudo de uma vez e ela obedeceu, tem meses que está brincando com ele”, conta a mãe Selma Oliveira, 38, enquanto a menina mostra orgulhosa seus desenhos.
Apesar de os desenhos entreterem Ana Júlia, a mãe disse se preocupar com o pouco aprendizado que ela teve neste ano, já que estava no começo da alfabetização. Ela se lembra como escrever o primeiro nome, mas não conseguiu avançar para o segundo.
No mesmo conjugado, vive José Leandro Melo, 9, que está no 3º ano do ensino fundamental e não tinha sido alfabetizado antes da suspensão das aulas presenciais. Como a mãe Jéssica Laurindo, 30, também tem dificuldade para ler, o menino não fez nenhuma atividade escolar.
“Roubaram meu celular e não tinha onde ele acompanhar as aulas online. Eu não conseguia entender as lições para explicar a ele, dizer o que tinha de fazer. O livro está do mesmo jeito desde que chegou”, disse a mãe, mostrando o material que o filho recebeu da prefeitura.
Ele não lembra o nome da professora, com a qual conviveu por poucas semanas antes do fechamento da escola, em março. Mas sempre pergunta à mãe sobre os colegas. “Ele não vê os amigos, não brinca com uma criança da mesma idade desde março”, contou Laurindo.
José Leandro passa os dias em frente à televisão ou brincando com os vizinhos mais novos, mas já se mostra mais irritado do que há alguns meses. “Ele tinha muita paciência com os pequenos, agora fica nervoso quando é contrariado.”
Apesar do receio de o filho ser infectado com o coronavírus, Laurindo disse que ele vai frequentar a escola no próximo ano assim que as aulas presenciais forem retomadas, já que teme prejuízos ainda maiores para a vida escolar do menino.
Na contramão de outros locais do mundo, o prefeito Bruno Covas (PSDB) decidiu não retomar as aulas presenciais regulares neste ano para as crianças -só autorizou o retorno para alunos do ensino médio e atividades extracurriculares para o restante. Ele também não anunciou ainda se pretende iniciar o ano letivo de 2021 com aulas a distância.
Para especialistas e organizações da área da educação, a reabertura dos espaços escolares e a volta da frequência dos alunos são fundamentais para recuperar os prejuízos pedagógicos, mas também sociais e emocionais, após o longo período de interrupção.
A educadora Pilar Lacerda, que foi secretária de educação básica do Ministério da Educação, diz que a retomada das aulas presenciais no próximo ano deve priorizar crianças como Raphaella, Ana Júlia e José Leandro, que não tiveram suporte escolar neste ano.
“Não podemos voltar para escolas com 30 alunos dentro de sala de aula. É preciso encontrar um novo modelo, que dê a atenção devida para os alunos que perderam o contato com a vida escolar nesse período.”
Segundo Lacerda, será preciso resgatar o vínculo dessas crianças com a escola para que se sintam estimuladas e capazes de aprender. “Esses alunos podem se sentir esquecidos. Eles precisam sentir que são importantes para os professores de novo.”
Em nota, a prefeitura diz que os casos citados são pontuais. No entanto, não informa se há estimativa de quantos alunos não conseguiram acompanhar as aulas remotas.
Estudo inédito feito pela Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados), divulgado na terça (22), mostrou que, apesar de a maioria dos estudantes de São Paulo fazer uso corriqueiro da internet (88%), 12% (cerca de 140 mil) não acessaram a rede nos três meses anteriores.
Ângela Soligo, professora da Faculdade de Educação da Unicamp, diz que um levantamento prévio da prefeitura sobre as condições de moradia das crianças e equipamentos eletrônicos disponíveis poderia ter evitado seu distanciamento da escola.
“Todo mundo sabia que uma parcela não iria acompanhar, mas pouco foi feito pra dar as condições adequadas a essas crianças. Ainda que seja uma parcela menor dos alunos, significa que houve falha, que parte deles passou um ano sem receber o direito à educação.”
Ela destaca que deveria ter sido considerado para o planejamento das aulas remotas não apenas a disponibilidade de internet, mas as condições que as crianças tinham para aprender. “Crianças pequenas precisam da mediação de adultos para aprender e, se os pais têm pouca instrução isso não vai acontecer”, diz.
A prefeitura diz ter disponibilizado material digital para 1,1 milhão de estudantes e ter entregado 1,5 milhão de livros com atividades pedagógicas. Também afirma que está finalizando uma avaliação diagnóstica online para identificar o nível de aprendizado dos estudantes de 4ª a 9º ano.
Para 2021, ainda sem ter definido quando retomará as aulas presenciais, diz que serão aplicadas medidas de atenção e recuperação dos conteúdos que “eventualmente foram perdidos”. Não informou, ainda, se haverá ações específicas para crianças que não conseguiram fazer atividades em 2020.
Do FolhaPress | Em: 27/12/2020 às 14:15:55