Rotular o feminismo de progressista pode dar a falsa impressão de que combater a violência doméstica é uma questão ideológica, diz a mulher que deu nome a uma das mais importantes leis sobre o tema no mundo.
“O problema não é nem de esquerda nem de direita”, diz Maria da Penha Maia Fernandes, 76. Sua história motivou a criação de uma legislação que completa 15 anos neste sábado (7) e tenta blindar a mulher contra agressões de vários tipos —física, sexual, psicológica, moral e patrimonial.
Hoje, ela, que foi vítima de uma arma de fogo, vê como “um pensamento totalmente esdrúxulo” a defesa que o presidente Jair Bolsonaro faz de armar mulheres para que elas próprias revidem a um agressor.
A biofarmacêutica Maria da Penha dormia quando levou um tiro de escopeta na espinha dorsal, em 1983, aos 38 anos. Conheceu o autor do disparo nos anos 1970. Ela fazia mestrado na USP, onde o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros era bolsista no curso de economia.
Casaram e tiveram três filhas. Quando as meninas tinham entre um e seis anos, o marido praticante de halterofilismo contou à polícia que lutou contra quatro assaltantes, e um deles teria atirado em Maria da Penha. Mentira, decidiu anos depois a Justiça.
A esposa voltou paraplégica, foi mantida em cárcere privado e alvo de novo plano para matá-la.
Maria da Penha sobreviveu para contar. “Minha maior conquista”, diz, “foi batizar a lei que protege todas as mulheres do meu país”.
FOLHA: Seu nome é sinônimo de combate à violência contra a mulher, mas nem todo mundo sabe por quê. O que lhe aconteceu?
MARIA DA PENHA: Eu estava dormindo quando recebi um tiro. Meu agressor contou a história que tinha havido um assalto na nossa casa. Passei quatro meses hospitalizada. Sofri uma segunda tentativa de homicídio através de um chuveiro elétrico propositadamente danificado. Então tomei conhecimento de que a história estava muito mal contada, né? A do assalto não estava de acordo com o que os vizinhos observaram naquela manhã.
Com uma ordem judicial, saí de casa de maneira sigilosa. Voltei para a casa dos meus pais com minhas três filhas. Demorou mais de seis anos para que ele fosse julgado. Foi condenado, mas saiu do fórum em liberdade por conta dos recursos. Revoltada, escrevi um livro chamado “Sobrevivi… Posso Contar”.
Houve um segundo julgamento, ele foi condenado e novamente saiu em liberdade. Meu processo foi analisado pela OEA [Organização dos Estados Americanos], que fez um relatório colocando a necessidade das nossas leis serem modificadas. Foi criado um projeto de lei, e ela foi batizada com o meu nome. Um pedido da OEA, uma reparação simbólica.
FOLHA: A senhora sabe onde seu ex-marido está hoje?
MARIA DA PENHA: Nesse relatório [da OEA, de 2001], foi pedida a prisão dele, porque já estava perto do crime prescrever. Meu agressor foi preso e cumpriu dois anos de cadeia. Depois de dois anos, foi para o regime semiaberto. Depois adquiriu sua liberdade total.
FOLHA: Antes de sofrer a agressão, a sra. sabia o que era violência doméstica?
MARIA DA PENHA: Olha, comecei a tomar conhecimento quando as militantes aí de São Paulo começaram a apresentar os casos de feminicídio que aconteciam no momento em que as mulheres queriam romper com o relacionamento. Não existia Delegacia da Mulher. Quando ela foi criada, ainda era necessário que, ao denunciar, a própria mulher levasse a intimação para o agressor. Uma coisa totalmente absurda, mas era assim que funcionava.
Eu vivia uma situação de violência doméstica. Não me atrevia a revidar porque tinha medo de sofrer uma reação física. Sofria por me sentir muito mal na presença dele, de achar que os fins de semana eram os piores dias, porque ele estava em casa, não estava trabalhando. E também porque ele maltratava as crianças, não tinha paciência.
FOLHA: A sra. já disse que a lei não precisa de reformas, e sim garantias de que seja aplicada.
MARIA DA PENHA: Ela possui três dimensões, a pedagógica, a preventiva e a punitiva. É necessário investimento em educação, a nível fundamental, médio e universitário, e isso ainda não está acontecendo. A falta desse investimento é responsável pela reprodução da violência vivenciada e aprendida na infância, [passada] de geração para geração.
FOLHA: No Congresso, é comum que os parlamentares apresentem projetos que querem alterar a lei para aumentar a pena para agressores ou medidas semelhantes de endurecimento penal. Isso é eficaz?
MARIA DA PENHA: O importante é criar as condições para a lei funcionar. Não é sancionar [essas alterações] que vão dizer que o crime é inafiançável, que é isso ou aquilo outro. É criar políticas públicas e fazer com que a mulher saiba onde procurar ajuda.
FOLHA: Em abril de 2020, a ministra Damares Alves exaltou 14 novas leis de proteção à mulher sancionadas pelo presidente e disse que “esse é o governo Bolsonaro, o governo que olha e protege a mulher brasileira”.
MARIA DA PENHA: Não concordo, porque o que vai resolver a situação, o que vai diminuir a violência, é a educação.
FOLHA: Bolsonaro defende que as mulheres se armem para combater elas mesmas a violência doméstica. Em 2017, por exemplo, disse que mulheres preferem sacar uma pistola a sacar a Lei do Feminicídio se pressentirem “uma maldade” no homem. É um caminho eficiente para dar fim às agressões?
MARIA DA PENHA: Esse é um pensamento totalmente esdrúxulo, e eu digo não. Eu mesma fui vítima de uma arma de fogo para sair de uma situação de violência. Precisamos não é de uma arma de fogo, é de políticas públicas.
FOLHA: A pandemia e o isolamento social aumentaram a violência doméstica. O que poderia ter sido feito para evitar isso?
MARIA DA PENHA: O isolamento social foi necessário, porque nós passamos por uma grande crise sanitária. O poder público deve criar canais alternativos de denúncia ou de proteção à mulher nessa situação. Dá para fazer, é só questão de querer.
FOLHA: Ataques misóginos são recorrentes a mulheres em redes sociais. O próprio presidente chegou a dizer que uma deputada do PT merecia ser estuprada. Acha que esse tipo de crime é levado a sério?
MARIA DA PENHA: Não como deveria.
FOLHA: Por que não?
MARIA DA PENHA: É uma cultura enraizada. Isso precisa ser bem esclarecido para que as pessoas que estão acostumadas a tratar a mulher dessa maneira repensem e saibam respeitá-la.
FOLHA: A violência verbal é vista como uma espécie de trailer para uma potencial violência física. Isso aconteceu com a sra.?
MARIA DA PENHA: Sofri muita violência psicológica, verbal. A gente sabe que a violência física é uma das últimas a acontecer, geralmente começa com a violência psicológica, a patrimonial, as morais. E finalmente chega o ponto em que a mão pesa no rosto de uma mulher. Muitas vezes ela percebe que sofreu violência no momento em que a [agressão] física aconteceu.
FOLHA: A sra. fala muito das mulheres e suas crianças. Como a violência familiar impacta as novas gerações?
MARIA DA PENHA: É um fato muito triste que a gente observa. Foi feita uma pesquisa pelo Instituto Maria da Penha em parceria com a Universidade Federal do Ceará. Para cada mulher assassinada, ficam em média duas crianças órfãs. Tem casos em que são sete, tem caso que é apenas uma, mas a média é de duas.
FOLHA: Acredita que homens agressores podem ser reabilitados?
MARIA DA PENHA: Sim, já estão sendo feitos projetos com esses homens agressores. Eles reconhecem que repetem a maneira como foram educados. Foram homens que, quando crianças, foram ensinados a engolir o choro, ensinados que bater na mulher é normal porque o homem é o dono da casa e o dono da mulher. Essa educação que essa criança recebeu ela traz para a vida adulta.
FOLHA: Os críticos da lei dizem que ela fere o princípio de igualdade entre os sexos.
MARIA DA PENHA: Isso é sem sentido, o Superior Tribunal Federal já considerou a lei constitucional.
FOLHA: Por que é preciso ter uma lei desse tipo voltada para as mulheres?
MARIA DA PENHA: As mulheres tinham o mesmo direito que os homens? Podiam sair de casa sem avisar pro homem para onde iam? A mulher tinha que pedir ao homem para ir na casa da família. Isso não é igualdade de direitos, porque o homem não ia pedir permissão à mulher para ir à casa da família, nem para sair para estudar.
FOLHA: Quase quatro décadas após a agressão que a sra. sofreu, poderia dizer que hoje está mais em paz?
MARIA DA PENHA: Eu transcendi tudo, tudo o que aconteceu comigo. Porque a minha maior conquista durante esses anos todos não foi pessoal. Não foi por que o meu agressor foi preso. A minha maior conquista foi batizar a lei que protege todas as mulheres do meu país.
FOLHA: Qual é a avaliação que a sra. faz da lei hoje?
MARIA DA PENHA: A avaliação não é só minha, é da ONU, de que essa é uma das três leis mais avançadas do mundo [para proteger mulheres].
FOLHA: A mulher de 2021 está fortalecida em relação às mulheres do passado? Hoje não aceitaria mais calada uma agressão?
MARIA DA PENHA: Depende do local onde a mulher mora. Se no interior onde ela mora não existe nenhum Centro de Referência à Mulher, como é que vai se conscientizar sobre os seus direitos? Ela ouviu falar sobre a Lei Maria da Penha, mas não sabe o caminho a seguir.
FOLHA: A gente vive uma onda conservadora no país, que resultou em 2018 na eleição de Bolsonaro. Às vezes se coloca o feminismo como uma luta de esquerda. Isso pode atrapalhar o combate à violência doméstica?
MARIA DA PENHA: Sim, porque o problema não é nem de esquerda nem de direita. O problema é não governar bem, porque nós mulheres precisamos pelo menos que em cada estado, como foi prometido, exista uma Casa da Mulher Brasileira. Outro ponto importante é o investimento em educação. Não foi praticamente nada colocado nesse sentido, o Ministério da Educação ainda não sinalizou para a questão de educar as crianças, os jovens e os adultos.